Latisana
A Urbe de Tisius
Nesse artigo iremos tratar de uma urbe de quase mil anos de história, que foi fundado por um colonizador romano de nome Atisius ou Tisius.
Ele teria adquirido as terras por volta do Século IV no processo de reforma agrária que Tibério Graco estabeleceu no ano 133 antes de Cristo, conhecido como Centuriação; método de distribuição e colonização de terras, muitas vezes fornecidas aos veteranos do exército de Roma.
Tisius então abraçou essa missão de desenvolver a região conhecida como “campo aquilano”, por ser muito úmida e pantanosa e em função da potente carga hídrica produzida principalmente pelo exuberante rio Taglimento, que fica na trajetória do seu leito de mais de 170 quilômetros de extensão a caminho da foz no Mar Adriático.
Com o passar do tempo “A Tisius” foi popularmente variando para Tisana agregando o artigo “A”, que no italiano é referido como “La”, e deste modo definitivamente como conhecemos hoje: Latisana.
A primeira vez que ouvi esse nome com suas características sonorizações peculiares locais surtiu como música, pois estava em Venezia quando ao me informar com o serviço ferroviário local para ir à San Michele, mais especificamente Malafesta, advertiram que deveria saltar na estação Latisana, há cerca de 88 quilômetros da Sereníssima cidade canalizada.
Tisius iniciou o desenvolvimento com as áreas chamadas de Apicilia (ou Da Pacilia), onde havia a estação de correios que se conectava através da Via Annia com as cidades romanas de Iulia (ou Giulia/Julia) Concordia e Aquileia próximo ao Rio Tagliamento que serviria de importante comercialização fluvial marítima. Deste modo aquilo que era apenas um pântano as margens do tortuoso rio, foi aos poucos se tornando interessante por ser uma planície propícia para o desenvolvimento de grãos e respectivamente em uma potência portuária que no dia 17 de julho de 1072 oficialmente passa a ser reconhecida de forma documentada.
Porém, trinta anos depois sofre uma desastrosa invasão dos húngaros, notórios pela crueldade devastante por onde passavam, Latisana então fica sob os cuidados e domínio dos Condes de Gorizia, poderosa sociedade entre eclesiásticos e descendentes da realeza bavaresca, que dominavam praticamente todo o feudo nordeste da península, conhecido hoje como a região Friuli-Venezia Giulia.
Algumas implementações, como a criação de muros e restrição de acessos, deram conforto e segurança aos seus moradores. O canal passaria por significativas estruturações se tornando de fato um privilegiado porto, formalizado no dia 27 de outubro de 1226, destacando-se pelo comércio de sal, desenvolvendo negociações importantes com o norte europeu, além de visitas ilustres, como a do imperador Corrado IV e do Papa Gregório XII.

Para a região esse também foi um período de quase revolução entre a população e os figurões de Gorizia: os latisaneses se opuseram às reivindicações dos condes ostentando métodos independentes regimentados em estatutos.
Entretanto, a longa e acirrada disputa, terminou com a estipulação de um acordo entre a comunidade do porto de Latisana e o senhor de Gorizia (Mainardo) no dia 13 de julho de 1245, com um ato redigido em Verona graças aos bons relacionamentos com o Imperador Federico II, que de fato reconheceu a plena soberania dos Gorizianos sobre Latisana.
A famosa "quem pode mais chora menos". Deste modo, Latisana perdeu quase todos os seus direitos de autogestão e, desde então, não houve notícias da posterior emissão de moedas.
SIGILLVM COMVNIS PORTVS LATISANAE
Documentos datados de 1360 incluem o selo medieval do Município representando uma torre com ameias guelfas ladeada por dois escudos com um leão rampante encimado por uma cruz e rodeado pela inscrição SIGILLVM COMVNIS PORTVS LATISANAE, elementos quase semelhantes aos presentes no dinheiro.
Latisana embora nunca fizesse parte do Parlamento da então chamada Patria dos Friuli, tornou-se cada vez mais importante no conselho de Gorizia.
A relação não era das melhores e em muitas delas o conflito era eminente ao ponto de no dia 16 de outubro de 1368 por exigência do conde goriziano Mainardo IV, a promulgação pública de um juramento de fidelidade por parte dos representantes do povo de Latisana na Igreja Santa Croce.
Em 1420 se encerra o período de dominação goriziana.
As terras são negociadas e em 1457 com Bartolomeo Vendramin, cujo pai Andrea era Dodge em Venezia, se tornando o maior mandatário das propriedades, um fato interessante já que a Pátria do Friuli com a sede em Udine, 40 quilômetros de Latisana, simplesmente faz vistas grossas à exclusividade do negócio.
Queda e martírios infinitos
Por quase um século os venezianos se ocuparam do feudo para então ser fracionado em 24 partes e administrados em jurisdições. Basicamente delegavam as funções administrativas, judiciárias e de ordem publica a um capitão, um despachante e três juízes populares. A comunidade por sua vez continuou com o seu próprio conselho, que desenvolvia meras funções submetidas aos juízes.
Neste período, incentivou-se a criação de cavalos, em particular de raça fina, e a produção agrícola.
Com o declínio do poder senhoril veneziano, acompanhado do crescente aumento da concorrência dos portos vizinhos, a força comercial da rota do Tagliamento começa lentamente a sentir o impacto mantendo a atividade mercantil razoavelmente ativa em Latisana até o final dos anos 1600, sobretudo no comércio de madeira advindo de Carnia com destino a Venezia.
Um aspecto notável da cidade do ponto de vista religioso nos séculos XVII e XVIII é sua aclamação conferida como Septifanium, local onde sete igrejas estiveram presentes e celebraram: San Giovanni Battista, Santa Croce, Sant'Antonio Abate (com o convento adjacente dos frades agostinianos), Madonna della Sabbionera (com o convento adjacente dos frades franciscanos menores), Oratório do Pio Ospitale, Oratório da Annunziata e Sant'Antonio di Padova (com o convento adjacente das mulheres franciscanas terciárias). Um conjunto de tesouros que reúnem em si uma longa história para contar as esplêndidas pérolas de arte forjadas por conhecidos e respeitados pincéis de fama nacional e internacional.

Os dois séculos seguintes que estavam por vir pareciam querer cobrar uma salgada penitência. Por um breve período após o tratado de Campoformio de 1797, a cidade passa a ser de domínio austríaco.
Em 1805 ocorre a ocupação do exército francês que derruba Venezia e com ela, várias dominações feudais, inclusive as de Latisana.
A cidade passa primeiramente a fazer parte do Departamento de Passariano em 1806 do então Reino da Itália criado por Napoleão se tornando sede administrativa local conhecida como Cantão de Latisana do distrito de Udine.
Em 1814 é simplesmente negociada por Bonaparte como moeda de troca com os austríacos que de longa data nunca desistiram da anexação definitiva de toda a região.
Sob o re-domínio da Austria passa em 1818 a ser parte da Província do Friuli do Reino Lombardo-Veneto mantendo papel de centro administrativo importante sob tutela de outros locais vizinhos como Pocenia, Precenicco, Rivignano, Teor e Ronchis. É também sua última conexão com Venezia, sobretudo eclesiástica, passando de San Marco para o bispado de Udine.

A natureza do Rio Tagliamento sempre se mostrou impiedosa em seu alastrante volume d’água nas crises de cheias. Particularmente no início do Século XIX devastou uma fração da cidade tornando-a parte de seu leito. Em 1820, os austríacos colocaram em prática importantes estruturas de barragens do rio em Canussio e Bevazzana, que porém não se mostraram eficientes nas cheias sucessivas.
Uma época complicada, denunciada nos registros civis, sobretudo os de óbito, que servia como um indicador sensorial hoje revelando altos níveis de mortalidade infantil, das gestantes, com doenças instauradas no âmago da população, acusando pobreza e falta de recursos sanitários.
A cidade clamava por socorro pelo descaso administrativo que assolava não apenas Latisana, mas toda a região dominada pelos estrangeiros. Numerosos patriotas latisanos participaram dos eventos chamado “Risorgimento”, incluindo dois “garibaldi” camisas vermelhas Coriolano Gnesutta e Paolo Scarpa e o general Carlo Alberto Radaelli. Com o plebiscito de outubro de 1866, Latisana, juntamente com parte de Friuli, foi anexada ao Reino da Itália.
A perigosa passagem de homens e carroças entre as duas margens do Tagliamento através do antigo degrau de barco ancorado a um guincho cessou em 1873, quando foi construída uma ponte para carruagens em madeira. Quinze anos depois, a linha ferroviária entre Portogruaro e Udine entrou em operação. Sob a administração italiana, as condições econômicas, saúde e educação pública melhoraram.
Nos últimos anos do século XIX, a iluminação elétrica foi introduzida no centro da cidade. Em 1903 iniciou-se o desenvolvimento turístico da estância balneárea de Lignano, com a inauguração do primeiro hotel, o Marin. Em 1908, a primeira conexão de telefone público ocorreu na linha Venezia-Udine. No mesmo ano, foi inaugurado o primeiro cinema "Stella", em uma área localizada na atual “Piazza Indipendenza”.
Em 5 de dezembro de 1909 foi inaugurada uma nova ponte rodoviária de ferro, substituindo a anterior em madeira. A nova ponte ficava 40 metros a jusante da antiga e consistia em uma viga metálica contínua dividida em sete vãos, dos quais os dois extremos de 20,16 metros e o quinto intermediário de 25,20 metros, para um comprimento total de 166 metros e 32 centímetros.
A viga era sustentada por pilares de alvenaria e 6 pontas metálicas intermediárias. No dia 23 de março de 1912 a inauguração do novo hospital, com base em projeto do Engenheiro Emilio Speroni (Milanês) e a direção médica foi confiada ao Doutor Mario Ferretti (Bolonhês).
As escolas primárias, com sua arquitetura elegante e grandes janelas em arco, foram inauguradas em outubro de 1912. O primeiro teatro (Sala Gobbato), decorado pelo escultor latino-americano Francesco Ellero casado com Anna Zamarian (reportagem exclusiva aqui), também data de 1912.
A cidade gradativamente volta a ter vida e alguma prosperidade, mas quando tudo parecia caminhar para a tão sonhada estabilização, vem a guerra de 1914 que expõem duramente Latisana como palco estratégico de dominação e destruição.
Novamente os austríacos, agora com a denominação completa de tudo que sempre soava mal para a cidade, sob o conluio de Império Austro-húngaro, que juntamente com alemães e turcos otomanos executam uma série de ocupações desmedidas, principalmente ao redor de seus limítrofes, promovendo assassinatos, genocídios, saques e todo tipo de crimes tão letais quanto às populações civis. Vale lembrar aqui nesse link o assassinato por parte dos alemães de Santa Martin, filha de Giuseppina Zamarian e Antonio Martin.

É evidente que cenários como esse provocaram saídas em massa de famílias inteiras não apenas de Latisana, mas de todo o Vêneto, que sofria conjuntamente essa série de desconfortos por gerações seguidas. Vários desses também Zamarian, isso não tinha como ser diferente.
Uma perda irreparável para o local a título de material humano e prosperidade local. Meu bisavô até que tentou acreditar que seria diferente, pois viveu seu amadurecimento justamente em um momento que a região queria dar a volta por cima.
Que efetivamente sua geração e principalmente as seguintes viveriam algum tipo de dignidade na amada terra natal depois dos pais e avós terem sobrevivido a várias tentativas de aniquilação da própria existência.
Mesmo assim ainda sentiu na pele o desespero de ver sua primeira esposa Carolina Lucchin, a caçula Lucia e a terceira filha do segundo casamento com Antonia Biason, provavelmente vítimas dos problemas sanitários, que ainda assolavam tantos cidadãos da região, de uma época não meramente batizada de “anos fatais” por falta de estrutura médica adequada.
Nas tantas angustias sentidas e sofridas resolveu colocar uma pedra sobre tudo e salvar o filhastro Giovanni Bacinello juntamente com o restante da família se transferindo com a própria roupa do corpo para o Brasil.
Dizia ele ao seu coração dentro do vapor Alice se afastando do porto de Trieste naquele gelado 10 de dezembro de 1913: É provisório, eu volto! Entretanto, o pensamento, com amargas memórias marcantes ainda frescas, certamente lhe negava essa súplica. Mas, e se realmente tivesse voltado, ou permanecido?

Além da enésima invasão austríaca e os percalços da primeira guerra já antecipada nos parágrafos anteriores, iria reviver cenários devastadores mais uma vez, com zunidos de bombas lançadas sobre a própria cabeça, mais precisamente no dia 19 de maio de 1943 (nove dias após minha mãe nascer em Minas), com quase cem mortes e os centros de Latisana e San Michele completamente desfigurados, frutos do segundo estúpido confronto bélico mundial e suas sorrateiras irresponsáveis ações.
Assistiria as estruturas fundamentais, principalmente para os primeiros socorros destruídos e a população, como de costume, totalmente desamparada. Mas a guerra, como defendem os fanfarrões de plantão, tem métodos cirúrgicos que não agridem a população. Nesse Artigo é possível se aprofundar um pouco mais nos desfechos que as guerras proporcionaram à Latisana e sua população, capítulos vergonhosos da história humana.
Para piorar esse cenário desolador, o processo de reconstrução da cidade é intercalado com duas cheias devastantes do rio Tagliamento em 2 de setembro de 1965 e 4 de novembro do ano seguinte.

Mas não há nada que o forte cidadão de Latisana não encare de maneira destemida. A história o colocou diante de várias provações como verificamos até aqui.
Por outro lado, retornando a atitude de meu bisavô em resguardar sua família, de certa forma apenas adiou esse reencontro, para que na presença de seu bisneto, no caso eu mesmo, pudesse 83 anos e 14 dias depois reviver o cenário da sua Latisana que tanto sonhou.
30.330 dias depois uma próspera e calorosa cidade que na sua primeira atitude é oferecer o que tem de melhor: a hospitalidade de seu povo. Deste modo uma imagem diz mais que muitas palavras e quando falei que era um Zamarian então me puxaram para a mesa e logo ofereceram “un buon bichiér di vino” para afugentar aquela noite gelada de inverno.

La Tisana sonhada
Quiz o destino que meu primeiro refúgio fosse esse mítico lugar, na “Locanda Alla Stazione”, exatamente nesse quarto de esquina do segundo andar como bem mostra no ângulo direto da imagem abaixo. E partindo dali revivi o reencontro com as origens aqui melhor explicado.
A serena Latisana de hoje possui uma infraestrutura notável com opções tanto para quem gosta do mar, através dos balneários Bibbione e Lignano Sabbia D’Oro, como para aqueles amantes da natureza ou ainda as montanhas.
É possível se locomover facilmente para a estação de esqui na neve. Foi citado acima o valoroso tesouro de arte sacra presente em suas igrejas que também vale a penas conferir por toda a história que carrega que também é nossa.
É praticamente colada em San Michele e Malafesta (que fica do outro lado da margem do Tagliamento). Frações importantes de nosso contexto também fazem parte de sua estrutura administrativa como Latisanotta, Gorgo, Pertegada (onde fica a mítica casa La Favorita, nome que carinhosamente herdamos para nossa árvore genealógica), Aprilia Maritima e Bevazzana.
E como diz nosso querido primo de Mendoza (Argentina) Armando Luis Zamarian, para um Zamarian nada melhor que outro Zamarian e Latisana está e sempre permanecerá em nosso DNA.