O reencontro com Malafesta
O importante elo familiar reestabelecido e o contato com a casa que abrigou a família por séculos, antes da vinda para o Brasil. Tudo quase que por uma casualidade, ou ironia do destino?
Os primeiros passos
Ao longo desses trinta anos de pesquisas, meu maior objetivo estava centrado em unificar as ramificações Zamarian. Por ser um sobrenome bastante expressivo e de certa forma exclusivo, logo interpretei que todos aqueles que o possuíssem, tivessem verdadeiramente uma relação muito próxima de conexão.
Deste modo esse trabalho começou bastante tímido, inicialmente atraído pela cultura italiana, já que as primeiras informações eram de que a família teria vindo de Venezia.
Mergulhei então no idioma e por gostar muito de cinema europeu, incialmente instigado pelo curso de alemão que fiz aos quatorze anos de idade, da mesma forma facilitou assimilar a língua com o auxílio da cinematografia italiana. Isso, atrelado também as interpretações musicais da velha bota, ajudaram bastante a recuperar essa conexão congelada com o falecimento de Osvaldo Zamarian.
Levantei toda a cartografia da província de Venezia e através de uma lista telefônica com os sobrenomes, as regiões com maior aglomeração. Uma seleção de correspondências iniciais endereçadas aos respectivos registros civis, com o intuito de descobrir efetivamente qual seria o local, então foram enviadas. Confesso que o trabalho era árduo e o resultado bastante frustrante. Uma série de respostas negativas não animava e de maneira indignada, elaborei uma carta de desabafo ao ministério das forças armadas italianas, dizendo que sobretudo meu bisavô tinha quase perdido a vida em guerra (de fato, um tiro próximo ao joelho, o tirou da batalha) defendendo sua nação e eu por sinal não tive nem a oportunidade de saber onde havia nascido na Itália. Obviamente essa chantagem emocional parecia não ter surtido efeito, pois a resposta não vinha.
Informação de ouro
Mas, eis que nesse intervalo, minha mãe aponta para aquele que seria fundamental nessa descoberta: o finado primo Paulo Zamarian. Tão fascinado pelas nossas origens quanto eu, grande músico que adorava dedilhar um Tico Tico no Fubá em seucavaquinho, se prontificou a ajudar nessa tarefa não apenas fornecendo o local estratégico que mais tarde viríamos a saber como sendo o ponto de origem de todos aqueles oriundos do sobrenome provenientes da Itália: ele relembrava com detalhes as várias conversas que tivera com o “nonno” Osvaldo Zamarian e a “nonna” Antonia Biason e enfatizava o nome “Malafesta”.
Fez questão de me levar no primeiro local em que a família se estabeleceu ao chegar da Itália, na cidade de São Manuel do Paraíso, fração de Botucatu, Estado de São Paulo, onde o outro primo, o finado Agenor Martin, de uma simpatia e generosidade imensa, nos guiou por um tour histórico fantástico, dando ainda mais apetite a nossa pesquisa.
Lembram da chantagem emocional aàs forças armadas italianas? Pois é passaram-se vários meses e um envelope bastante volumoso com remetente do “Ministero Della Difesa” me deixou empolgado, afinal de contas uma resposta negativa não viria em forma tão espessa: dentro dele havia uma folha enorme com a lista de alistamentos militares da época, um fato que colocou vez por todas combustível para prosseguir na busca pela origem.
Gradativamente então, fui sendo preparado para um desafio maior, que seria o de interpretar parte de minha origem e a viajem para Itália. Em dezembro de 1996, graças à minha mãe, que morava em Roma, essa conexão com a tão famosa Malafesta, pequeno distrito do município de San Michele al Tagliamento, Província de Venezia, nordeste italiano, se reestabeleceu. Um detalhe bastante interessante a ser enfatizado nisso tudo, é que a companhia aérea que me levaria a península italiana era a russa Aeroflot, explico: O Antonov que sairia de Guarulhos, primeiramente pousaria em Moscou, para daí fazer a conexão com Roma. No aeroporto internacional Domodedovo estranhei a insistência dos agentes de costumes russos ao perguntar se eu falava russo... Mas porque essa questão sabendo que eu era brasileiro? Não fazia sentido... (explicarei mais adiante)
Para encurtar um pouco, conheci muito bem a Itália, pelo menos de maneira regional, não tendo a oportunidade apenas de deslumbrar o extremo sul do país. Claro que a viajem mais esperada e emocionante foi essa reconexão com Malafesta, que se deu inicialmente em Venezia, obviamente, através de um trem saindo da Términe de Roma.
Reestabelecendo sentimentos e emoções
Ao desembarcar na “sereníssima ”, acompanhado de minha mãe, minha irmã Ceila e meu sobrinho Fernando, atravessamos todas as pontes que ligavam a estação Santa Luzia de Venezia até finalmente chegar a Piazza San Marco e ali percebi porque a bisnonna Antonia Biason chorava tanto quanto citava o lugar (informação de minha mãe): a história, cultura e potência arquitetônica transmitem isso sem a mínima necessidade de interpretação emocional mais profunda.
O frio era muito forte, mas não intimidou o desejo de finalmente conhecer o berço inicial da gênese italiana histórica da família.
Latisana a porta de entrada
Nem mesmo o fato de ser 25 de dezembro, onde tudo parecia semi-deserto, já que estamos falando de uma cidade de aspecto rural de pouco mais de 10 mil habitantes.
Deste modo, considerando o dia, transporte público era um achado e não tive outra alternativa a não ser ir caminhando pelos onze quilômetros (não tinha essa informação) de trajeto que separavam a estação da cidade vizinha Latisana ao distrito de Malafesta.
Caminhada Emocionante
Logo nos primeiros metros percorridos, uma impressionante imagem me fez relembrar de outro fato histórico familiar de minhas anotações: o imponente rio Tagliamento. Segundo alguns relatos, Antonia Biason chegou a trabalhar em uma embarcação que fazia a travessia do rio, e todo esse cenário, que era apenas uma prospecção em meus pensamentos, instantanemaente invadiu com muita emoção meu estado de espírito naquele momento.
Continuando o longo percurso, de um asfalto bem preservado com um tom de modernidade que não esperava, realmente a ansiedade de chegar ao destino logo tomou conta, e pelos poucos recursos que possuía (naquela época), não fazia a mínima idéia de quanto ainda teria que caminhar, mas logo que consegui avistar uma alma perambulante no trajeto, naquela manhã fria, já fui logo tratando de perguntar. Um menino de bicicleta foi o primeiro (e talvez único) alvo de minha aflição, sendo sua resposta nada confortante: ao levantar agudo de suas pestanas em um “timing”profundo sucessivo de uma longa estalada de sonbrancelhas, e um suspiro profundo respodenra: “… ma, è un puo lungheto ancora, sai…”.
Mas tudo bem, eu tinha meus vinte e três anos e andar sempre foi uma atividade muito presente na minha vida desde criança, além do que tudo aquilo me arrepiava para dizer a verdade; tudo era fascinante, e querer saber quanto faltava para chegar, era mais por ansiedade do que propriamente dito canseira. Outro detalhe bastante pertinente nessa primeira relação com o local, era a quantidade de monumentos com listas imensas de militares que perderam suas vidas em combate como póstuma homenagem. Se tem uma região na Itália que sofreu ferozmente com inúmeras guerras e trágicas perdas, estamos falando exatamente deste trecho. Para muitos Zamarian descendentes, hoje é um milagre sua própria existência em função dos sacrifícios feitos pelos antepassados para poderem sobreviver deiante de tantas atribulações.
Finalmente me deparo com a placa que anuncia o próximo local: Malafesta! Havia pesquisado e escutado muito a respeito desse nome, como bem coloquei aqui antes, mas jamais sentido com a devida e tão almejada cumplicidade. Subi então numa espécie de barreira que serve para proteger os arredores da cheia do grande rio Tagliamento (ele deve encher assustadoramente pela altura dela). Não era por acaso as construções, mesmo se datadas de 1600/1700, possuírem como caraterísticas típicas pelo menos dois pavimentos. Mas, o que me impressionou, foram os Alpes no fundo com seus topos brancos, um pouco como os famosos “Mont Blanc” franceses, afinal pertencem a mesma sequência de montanhas que fazem a muralha do norte italiano.
Ao aproximar mais, como não havia Google Maps na época, me preparei antes coletando da lista telefônica alguns endereços para as visitações: a inicial foi na primeira estrada transversal, a “Via Colombara”, onde morava Mario Zamarian (dez anos mais tarde dormiria na casa de seu filho Dario em Cupertino na California), filho do sobrinho de Osvaldo e Antonia Biason, Carlo. Porém nem imaginava essa ligação na época, pois nosso prospecto genealógico naquela época nem mesmo existia, então não tinha como saber disso. Era uma propriedade rural (como a maioria do local), mas pelo fato de ser dia 25 de dezembro, acredito que não estavam em casa pois não existia nenhum movimento. A própria imagem ilustra como o local estava desprovido de pessoas a vista.
Reconexão inusitada
O segundo local ficava na continuação da “Via Colombara”, mas do lado oposto dessa rodovia principal (SP 75) da imagem, que passava a ter o nome de “Via Carso”. No endereço indicado, o nome de Olinto (Antonio) Zamarian, que por sinal era irmão do Mario, mas obviamente só fiquei sabendo disso depois. Para minha sorte ele estava em casa e foi bastante hospitaleiro, me acolhendo e oferecendo café. O frio era tremendo e como já havia caminhado um pouco, o expresso quente ajudou bastante. Fiz uma introdução daquilo que conhecia da família (confesso que não tinha nem 10% do conhecimento que tenho hoje) e ao final ele confessou que não eram nomes conhecidos para ele. Acrescentou também que no local haviam várias famílias Zamarian que nenhuma parecia ter relação com a outra... Hoje sabemos que todas tem conexão.
A Grande Beleza
Deixei meus dados com o Olinto, o esboço familiar que havia preparado e pedi a ele para tentar ajudar nessa reconexão familiar. Digamos que, naquele dia, esse primeiro encontro fora frustrante daquilo que havia imaginado, no entanto jamais perdido: quando retornei ao Brasil, recebi uma ligação de alguém se identificando como Giovanni, e mais, como irmão Olinto e a confirmação que me deixara bastante feliz e impressionado: não apenas constatou nosso grau de parentesco (que obviamente, depois ficou fácil de averiguar que era muito próximo) como também revelou que a casa onde eu estivera (aquele de Olinto) havia pertencido a Osvaldo Zamarian. Ou seja, todos os filhos (inclusive meu avô Severo) haviam nascido naquela casa. Certos acontecimentos na vida, apenas Deus explica. Digo literalmente, foram gerados ali, porque partos, até muito pouco tempo atrás, eram realizados todos na própria residência, através de parteiras. Antonia Biason, esposa de Osvaldo, que antes de vir par ao Brasil naquela casa, evidentemente também morou, era desse time que tinha o dom para trazer neo-natos ao mundo.
Retornei a região no dia seguinte avançando um pouco mais adiante de Malafesta, rumo a paróquia de San Tomaso Apostolo em Villanova della Cartera atrás de documentos, onde a emoção foi forte. O pároco me acolheu muito bem e diante do desafio que eu tinha, sabendo que aquele era um momento ímpar, ajudou no que podia nessa busca. Um a um dos filhos de Osvaldo Zamarian (e até mesmo de uma filha, Angelina Severina, que não estava na lista, portanto ninguém da família sabia da sua existência) fomos apurando naqueles enormes e antigos livros que a paróquia conservava. Para minha sorte a secretaria paroquial era provida de uma copiadora e deste modo pude sair de lá munido dos documentos que havia presenciado.
A busca inicial pelas origens foi o combustível necessário para reconectar-se com a cultura e língua, que agora sabemos, tem um fascículo de pelo menos 400 anos. Com todo o conhecimento acumulado de pesquisa durante esse tempo, foi possível concluir o primeiro desafio imposto: unir toda a ramificação Zamarian. Obviamente, esse processo ajudou de forma natural a compreender melhor as milhares de peças dessa genealogia, que até então parecia complicada até mesmo para os nativos.
Relembrando então o parêntese levantado no começo dessa publicação que explicaria o ocorrido no aeroporto de Moscou... Pois é, ao longo dessas pesquisas descobrimos juntos que o sobrenome Zamarian (até que se prove o contrário) revela sua origem. Tecnicamente, todo sobrenome que tenha no seu sufixo IAN denuncia sua origem, a Armênia. Não por acaso, o agente de costumes russo, notando esse detalhe (pois o visto estava me lingua russa), imaginou que eu pudesse falar russo (já que os armênios participaram no passado como uma das repúblicas da antiga União Soviética), mas obviamente, eu nem sabia da minha história com a Itália, quem dirá com o oriente.
Essa odisséia entra agora em um novo capítulo e como era de se esperar, ao que tudo indica, dentro de uma fronteira totalmente desconhecida com uma nova língua e costume a ser compreendido, o que torna ainda mais fascinante o prosseguimento dessa viajem.