Poético porto de todos nós

Hoje navegaremos pela bela interpretação de Diego Collovini, não por acaso cidadão ilustre de Portogruaro, formado em filosofia pela Universidade de Padova, leciona História da Arte Moderna.

Todo Zamarian também é um pouco portogruarense, pois antes de San Michele a metrópole que abraçava administrativamente as demais localidades ao redor era Portogruaro.

Basta notar por exemplo pelos primeiros documentos do registro civil napoleonico que introduzem os mesmos destacando “…Dipartimento dell’Adriatico, Distretto e Cantone di Portogruaro…”. Mesmo porque essa grande metrópole fica apenas exatos 15,2 quilômetros de distância, pouco mais de duas horas e meia de caminhada, de Malafesta, berço da gênese Zamarian na Itália.

Em nossa genealogia são filhos ilustres de Portogruaro, além de outros, por exemplo, Giuseppe Zamarian (nascido em 1867), Cirillo Zamarian (nascido em 1882) e Giuseppina Zamarian (nascida em 1875), todos filhos de Pietro e Antonia Marcos, importante braço genealógico da família que se desenvolvera em grandes proporções no Brasil e porque não dizer também na cidade margeada pelo famoso rio Lemene que ligava a Sereníssima Venezia.

Uma boa filha sempre à casa volta

Sim porque, Giuseppina Zamarian, então caçula de Pietro e Antonia Marcos, retornou para Itália por volta do ano de mil oitocentos e noventa e oito, agora com o então marido Antonio Martin, já que ele era o único filho homem que poderia cuidar da grande propriedade do pai Giovanni, no famoso distrito de Summaga, onde criaram e por sua vez cresceram seus dezessete filhos.

O enorme casarão de tijolinhos à vista com uma majestosa arquitetura colonial, ainda pertencente a família, e particularmente, segundo relato do primo Olivier Negri (sobrinho bisneto de Giuseppina e Antonio) quando lá esteve, teria sido reformada com restos do campanário de Venezia que acabou ruindo devido a um terremoto em 1902.

Cumplicidade com a história de Venezia

Prova é que na estrutura da casa de Summaga, havia uma placa (pertencente ao campanário veneziano) com as inscrições “Repubblica di Venezia” (conforme imagem abaixo) que fora colocada em uma posição de destaque na casa depois da reforma. Os tijolos e restos do campanário, afirma Olivier ainda, foram transportados pelo rio Lemene.

O texto oferecido pelo historiador Collovini nos dá justamente essa sensação de explorador onde serenamente vamos viajando ao redor da história e magia de Portogruaro.

Navegando por uma secular história

Por Diego Collovini

Para o atento viajante, Portogruaro se mostra imediatamente no seu plano arquitetônico medieval, caracterizado por encantadoras construções, com pórticos paralelos enfileirados, sob os quais elegantes pontos comerciais ocuparam os espaços no curso dos séculos com tendas e artesanatos.

Mas a cidade apenas pela aparência parece apresentar-se para o mundo de maneira mais completa e total. Aquilo que nós vemos é a alma, por assim dizer, terrestre, aquela tida como terra firme, nas áreas rurais circundantes, nas outras floridas localidades que ocupam os territórios que se estendem para o Friuli.

Mas entre aquelas duas elegantes ruas, transcorre um outra semi escondida: è a alma fluvial, aquela que corre para o mar Adriático, aos grandes centros do oriente.

Uma alma esta que protagonizou, por todos uma história não tão recente, a propensão ao comércio, as negociações com Norico, da qual provinha (e desde 1429 exclusivamente pela Serenissima) o ferro, e com Venezia, de onde chegavam especiarias orientais.

Um comercio todo documentado através de dois preciosos diários de bordo (Libri del traghetto), agora conservados no Museu da Cidade. E “Meriegole” (que possui cópia) da arte dos barqueiros, nos quais eram anotados os proprietários de grandes embarcações e as mercadorias que transportavam a bordo, o percurso fluvial que conectava a cidade das lagunas com Portogruaro.

Passado glorioso

Uma realidade social e economica parcialmente escondida da imediata visão. O rio, por séculos, fora, o coração da cidade desde a sua fundação, tanto que as casas senhoriais se estendiam com celeiros e armazéns até os bancos.

Nesses locais, eram estocadas as mercadorias e depois transportadas para os mercados do norte, por meio de grandes carruagens. Dos dois lugares reunia tais riquezas ao ponto de competir, com sucesso, com outras realidades vizinhas, como San Vito al Tagliamento, Motta di Livenza, Pordenone e Latisana.

E foi justamente a rota fluvial que permite a rica e potente família de banqueiros florentinos, dos Bardos, em 1371, tomar o município e lutar com o povo de Portogruaro, de onde eles saíram inexoravelmente derrotados. Aquela foi uma ocasião para bloquear o acesso via fluvial a cidade. Controlada através de uma via, chamada justamente de rastelo ou “rastrello” (que acabou assinado esse nome para a rota) com o propósito de controlar as embarcações que ali transitavam.

O desenvolvimento econômico

Palazzo Pari, ainda conserva as muralhas, nas quais passavam os preciosos sacos do mineral.

Mais próximo da foz é construído, em 1447, a alfandega ou fondaco conhecida como “todeschi” porque fora financiada por comerciantes alemães, os quais armazenavam mercadorias direcionadas a Venezia.

Os cereais, cultivados em zonas rurais imediatamente fora da cidade, eram assim transportadas, em grandes embarcações, para os dois particulares moinhos do século XIII de propriedade da diocese de Concordia para serem moídos. Os dois moinhos de Sant’Andrea não eram os únicos (hoje presentes na sede da Galeria Comunale d’Arte Contemporanea), um outro se localizava imediatamente após a porta de San Giovanni, no poço do homônimo local.

A face rudimentar e as alternativas do povo portogruarense

Mas talvez aquela riqueza, proveniente de prósperos comerciantes, não devia ser distribuída de maneira igualitária. Ao lado dos moinhos, próximo a catedral de Sant’Andrea (que por algum tempo mantinha a face voltada para o rio Lemene), existia o armazém da forragem (fondaco delle biade), “conhecida como dos pobres, da qual vendia o pão e a farinha amarela por minuto, a um preço menor, uma vantagem para pessoas com poder de aquisição menor”.

Sinal esse também de um comércio local principalmente voltado aos cidadãos, as pessoas que moravam entre os muros. A praça se torna mercado de cereais, frutas e verduras; a carne ao contrário era negociada na “sua natural” rua do açougue por assim dizer (calle delle Beccherie). Justo atrás do palácio municipal existia por um tempo os pesqueiros (la pescheria), onde os pescadores de Caorle vinham vender, exclusivamente, seus pescados. E sob o terraço os mesmos construíram, em 1627, um oratório de madeira medicada a Nossa Senhora.

Na praça principal e nas imediações vizinhas “consumidores e barqueiros em perpétua tagarelice nessas vias e tendas comerciais” que exercitavam a venda por minuto; agora, observando atentamente, se pode ainda encontrar marcas dessa época nas colunas dos pórticos, onde eram posicionadas as mesas, que serviam como banco para essas tendas comerciais, ao mesmo tempo que intervalava-se de fronte a esses pontos um café além de outros produtos discretamente posicionados”. Esses são traços de um cotidiano, que caracterizaram por anos a vida dos seus cidadãos.

Esta alma fluvial, que o “garibaldino” (soldado voluntário, membro dos Caçadores dos Alpes, comandados por Giuseppe Garibaldi) se lembra com “cheiro de salmoura, palavrões e contínuas misturas de embarcações cheias de mercadorias em meio a âncoras e correntes…”, certamente possibilitou a muitas famílias de Portogruaro acumularem riquezas e de ostentar-la naquela agradável arquitetura veneziana; mas este não era apenas o que motivava no “correr atrás da moda de Venezia”, quando um estilo importado por muitas familias venezianas, que no curso dos séculos, se transferiram para Portogruaro.

Deste modo os palácios, as faixadas, os pórticos caracterizaram esteticamente a segunda alma da cidade. Os grandes portões das casas senhoris davam para as duas estradas paralelas ao rio. Os corredores de entrada, pátios internos intermediavam o acesso para os armazéns no rio. Quem agora percorre esses caminhos imediatamente sente a história social de Portogruaro, que se expressou na atual disposição urbanistica.

Muitas casas de um certo valor histórico foram derrubadas para deixar lugar ao novo, delineando assim uma marca necessaria ao nosso viajante para compreender a evolução artistica e arquitetônica da cidade. Ações urbanísticas necessárias foram implementadas e agora se confundem , se perdem pelas estradas; efeitos a revelar o verdadeiro nem sempre apreciado em virtude dos estilos contrastantes, mas de certa forma sinal da passagem da história, do transformar e do adequar-se de uma cidade em função dos seus cidadãos.

E justamente sobre essas faixadas se encontram os indícios de uma história toda portogruarense, tanto que o nosso viajante será atraído pela sua beleza e pelo monumentalidade dos palácios, de suas decorações gótico-venezianas, que sempre caracterizaram a cidade do rio Lemene. E, em seguida o reclame da beleza, que muitas vezes faz a imaginação viajar; imediatamente as deduções se transformam em imagens.

Então as três torres (aquelas que ficaram das cinco ou seis portas de acesso a cidade) oferecem uma dimensão imaginativa notável. Eram na realidade eram torres de balaustre, abertas no ponto que apontava para o centro, unidas entre elas das muralhas com pequenas casas próximas a ela, até que os cidadãos estivessem preparados para defender a cidade.

E uma vez entrado sob aqueles arcos, lentamente descobriam as belezas arquitetônicas: leões de Marcos evangelista distribuídos por toda extensão, diversas mosaicos de paredes medievais, ainda encaixadas sobre os muros ao lado de capitéis coríntios ou dóricos, em baixo relevo de pedra d’Istria, em marmore ou em terracota (tipo de argila). Símbolos da cidade e marcas nobres esculpidas sobre pontes (Portogruaro conta com quinze delas), sobre casas, palácios municipais, poço de Pilacorte, que testemunham famílias patrícias que administraram a cidade.

Milernamente conservada

Fragmentos da Concordia romana, armas gentílicas da nobreza, pinturas murais de escola veneziana, arquiteturas renascentistas reconstruíram o curso da historia.

Como não apreciar as decorações geométricas dos palácios Moro, Longo (ambos com restaurações recentes) e Zovatto; como não parar e interpretar as citações mitológicas dos afrescos do Amalteo e da sua escola sobre faixadas das casas Marzotto e Pasqualis ou no interior da igrejinha de San Luigi; como não gastar um pouco de tempo para penetrar na simbologia dos baixo relevos e alto relevos em argila do Palazzo Dal Moro, ou ainda parar e acariciar a história das colunas romanas dos elegantes capitéis coríntios do Palazzo Muschietti, ou deter-se no efeito visual criado pela colunata do Collegio Marconi.

Ou ainda espiar os afrescos que, com figuras mitológicas, geométricas ou grotescas que decoram os corredores.

Arquitetura refinada

Mas para quem quer admirar um pouco mais a beleza arquitetônica de Portogruaro, pode desfrutar a leveza das janelas dos palácios Impallomeni e Dal Moro, ou daquele De Göetzen, ou ainda os trilobados do Palazzo Degani, Muschietti e Moro. Porém mais fascinante para descobrir como o Bermasco, por vontade da família Squarra, que desenhou a Villa Comunale sem ângulos retos: os obtusos e agudos, em visíveis contrastes com o terraço superior, pelos leves arcos totalmente arredondados, tipicamente renascentistas.

E aqui entrar para visitar um pequeno, mais rico, museu paleontológico. Destacar frontalmente a praça municipal e um Monte di Pietà (construído em 1666) graças a um alto relevo onde aparece Nossa Senhora com o menino Jesus. Enquanto “lá e cá pela nobreza e pela praça togas negras de advogados, longos códigos de Nodari e os venerados abitos dos patrícios” em bela aparência diante do palácio comunal com as ameias gibelinos, que ali estão, a testemunhar a escolha veneziana, para não se submeterem a dominação episcopal de Concórdia.

Filhos ilustres

Mas a curiosidade fica por conta também dos personagens que deram brilho a cidadã do rio Lemene.

E quando se passa diante do palácio Altan-Venanzio, uma placa lembra onde nasceu o futurista Luigi Russolo, ou ainda se podemos imaginar como Ippolito Nievo, dono de todas essas impressões entre aspas desse texto, retiradas da sua obra “Le Confessioni Di Un Italiano”, observasse, das janelas do Palazzo Fratto, onde se hospedou muitas vezes, a passagem e o comportamento dos portogruarenses.

Hospedes famosos

O ranger das janelas do Collegio Marconi, de onde se liberavam as rimas de Lorenzo Da Ponte, libretista de Mozart; do qual repertórios arqueológicos, estimulavam as direções orquestrais de Sinopoli ou aquilo que entrasse nos pensamentos de Sviatoslav Richter, quando admirava o lento curso do rio Lemene.

O voltar enfim no tempo para imaginar onde discursasse desde jovem o patriarca Panciera e perambulasse onde Giulio Camillo del Minio tivesse aprendido a arte de viver a corte de Francisco I da França ou naquele Escorial almejado por Filipe II da Espanha, e onde ainda se conserva o manuscrito do seu Teatro da memoria.