A cumplicidade com o rio

De maneira mais abrangente, San Michele que fica sobre o leito do majestoso Rio Tagliamento, por isto então a proposta do nome tão longo, é para nós um precioso ponto de referência da gênese Zamarian na Itália. Ao que tudo indica foi neste lugar que iniciou a versão latina do nome, que conforme nossas pesquisas documentadas, existe uma cumplicidade de pelo menos mais de 400 anos de história.

Neste artigo tentaremos introduzir essa macro região que se estende desde Villanova e Malafesta, pontos cruciais da gênese familiar, até a foz do Rio Tagliamento, com fragmentos de muita cultura, dentro de sua milenar história, na tentativa de reconstruir o ambiente antigo do território, de um ponto de vista geo morfológico que pode nos dar uma leitura da situação.

As primeiras impressões

“Um litoral baixo e arenoso, movimentado por amplos riachos e vastos pântanos que favoreciam também, inclusive no passado, uma navegação segura e tranquila com numerosos desembarques e onde havia alternância das marés garantia uma salubridade incrível.”

Marcus Vitruvius Pollio, arquiteto romano, Séc. I a.C.

Salubridade que contra distinguia o ambiente natural dos pântanos galeses O historiador grego Estrabão também foi particularmente tocado pelo ambiente natural do litoral no alto adriático:

“… quae circum Altinum, Ravennam, Aquileiam…”
“de fato toda a região é rica de cursos d’água e de pântanos sobretudo as habitadas pelos venetos, que também se interessavam pelas variações das marés… Durante a alta maré essa recebe uma parte considerável do mar; desta forma levados embora pelo mar e pelo rio toda a sujeira do ar, antes insalubre, que se purifica… E claro este ar não danoso que se encontra entre os pântanos é algo desta maravilha, como em Alessandria…”

(Séc. V a.C.)

Enfim o historiador romano Titus Livius (59 a.C. - 17 d. C.), que inegavelmente conhecia bem (era patativium, em latino, ou simplesmente padovano) “il tenue praetentum litus” (tênue praia estreita) descreve com realismo estes lugares, relembrando que além daquele litus (estreito) “haviam espelhos d’água alimentados pelas marés, e, pouco depois, campos cultivados, enquanto ao fundo relevos montanhosos” (Livius, Séc. X a. C.).

São referencias que nos levam inegavelmente a esses lugares; saliências e ilhas, áreas barrocas e pantanosas, mas também espelhos d’água mais amplos com numerosos canais com uma amplitude ainda maior em seu litoral. E é entre os cordões e dunas da faixa litorânea da atual Bibione, o local onde “os ricos mercadores de Concordia Sagittaria vinham desfrutar da beleza do mar ondulado que se aquieta, assumindo o calmo aspecto das águas de uma laguna” ( Flavius Magnus Aurelius Cassiodorus Senator, escritor, político Séc. V).

Mutteron del Frati

Um testemunho das célebres frequências da região dos tempos de Roma antiga, das escavações denominadas “Mutteron del Frati” onde ressurgiu uma série de ambientes, coligados entre eles por um corredor pavimentado com um fragmento de mosaico branco, com uma faixa perimetral composta por duas fileiras de ladrilhos pretos.

A ampliação da escavação exibida em 1993, além de ter colocado em evidência a presença, mesmo se em pequena proporção, de ambientes elegantes com pavimentos desonrados por mosaicos motivos geométricos, refinadas pinturas nas paredes, amplas soleiras em mármore, evidencia vãos puramente funcionais, pavimentados com cerâmicas simples.

Não é fácil dizer se os mesmos são datados de épocas anteriores da habitação, visto que se caracterizam por uma considerável resistência ao desgaste e por uma longa aplicação, fora daquilo que era utilizado na época. Esta convivência na edificação apresenta diferentes avaliações qualitativas das funções desempenhadas nas áreas internas: as residenciais e de uma representação parcial, àquelas ligadas ao trabalho domestico da outra. Se evidencia então a convivência de duas classes sociais no interior da habitação, repetindo na vila marítima aquela articulação entre setor patronal e setor servil, que é muito mais conhecido e evidente nas vilas (mansões) rústicas.

Uma estranheza pode-se revelar pela diferente dimensão, no âmbito dos ambientes patronais, entre os vãos sociais e os privados. De fato é evidente a importância dimensional e decorativa naquele designado social nessa habitação, certamente de pertencer a alguém de classe média alta, onde as funções sociais se desenvolviam em um complexo sistema de ambientes de recepção e sala de estar; a elegância e as grandes dimensões dessas acomodações, parecem compensar a função de representação do peristilo (galeria de colunas que rodeia uma edificação) ainda não identificado.

Que essas construções marítimas fossem exclusivamente de tipo “turístico” se pode facilmente deduzir pela ausência total de implementos de aquecimento, cavidades ou tubos parietais.

“No setor oriental da região se encontram essas residências (mais de quatro apenas em Bibione) diversões ricas e improdutivas para ociosos opulentos” (extraído do livro “De re rustica”, do escritor Marco Terenzio Varrone, publicado em prosa em 37 a.C.) “de tal beleza que inspiram até o poeta Marcial” (Marcus Valerius Martialis 38-104): “aemula Baianis Altini litora villis” (as vilas litorâneas de Altino emulam aquelas de Baia).

Bibione

E quando folheamos a carta de “Plínio, o Jovem” do advogado, escritor r magistrado romano Gaius Plinius Caecilius Secundus (61-114) escreve, da sua vila marítima sobre o Laurentino, impossível não reconhecer a mesma atmosfera de Bibione:

a vila (residência de porte e terreno grandes) é ampla e cômoda, não possui manutenção cara. O acesso se dá em um átrio simples, mas também decorado. Segue então um pórtico… que circunda um pátio pequeno, mas gracioso . É um excelente refúgio contra o mal tempo, porque é munido de janelas e, mais ainda, protegido por beirais e coberturas. De fronte ao centro do pórtico se abre um agradável poço, então um belo triclínio que avança até a praia, e, quando o mar é empurrado pelo Africo (vento Scirocco quente que vem do sudeste italiano) é levemente batido por ondas então remotas e moribundas. A riviera é povoada, com belíssima variedade, contínua ou intercalada, de vilas, que, seja pelo mar ou quem caminhe pelo longo estreito apresenta o aspecto de muitas cidades

(Plinio, o Jovem, publicações publicadas entre os anos 96 e 113)

Uma referência alternativa local diz respeito também a uma fonte de águas termais. Termas que continua sendo atração local forte de Bibione vindas a meio quilômetro no solo hipertermal alcalino mineiral que fornece naturalmente um fluxo de água a temperatura de 52ºC. Sua composição é reconhecida como fonte teraupeutica pelos órgãos sanitários italianos. São classificadas como alcalino-bicarbonato-sódicas, com presença de microelementos oriundos da formação calcárea mezozóica.

Numerosos foram os achados na área do IVº (quarto) Bacino desde recuperações de fragmentos cerâmicos com paredes bem finas sem pinturas, decoradas com aplicação de gotas de relevo (folhas d’água), atribuíveis a xícaras, tigelas, copos que estão documentados em 42 exemplares: este dado é de se levar em consideração anômalo de comparações com materiais locais semelhantes e contemporâneos (séculos I e II d.C. momento particularmente favorável para toda a área). Foram produzidos de olarias da Clemens na Aquileia (Padova), as Sariusschalen (copas da época romana do tipo Sarius) presentes no território com três encontradas, dos quais uma de forma Madlensberg 2 que encontra um confronto pontual em Torre (Pordenone). Outra cerâmica de valor, a Terra Sigillata, tanto de Arezzo quanto do norte da Itália, está presente no local em formas lisas e decoradas, atestando 43 exemplares diferentes. Este estudo preliminar dos tipos presentes no site destaca uma situação que não encontra confrontos; as cerâmicas valiosas superam quantitativamente as de formas comuns, fato que não se repete em nenhum outro contexto. A freqüência das fontes, considerando as probabilidades de forma extremamente ocasional, nos leva aos séculos IV e V d.C., datação revelada pelo estudo dos materiais mais tarde, de origem africana. Estes dados, associados a situação paleo ambiental (o site insiste em uma lente de areia muito fina isolada no meio de um terreno agrícola), próximo (cerca de 100 metros) do poço de extração de águas termais de Bibione que permite a hipótese fascinante já formulada: um desfrutamento de águas termais já na era romana, com consueto ritual da saída na fonte da copa ou do copo.

Segue um período escassamente documentado, entre o final do século VI d.C. (abandono das fontes termais) e sucessivo assentamento humano: o ponto da alfândega veneziana de Baseleghe, com fases iniciais documentadas a partir do século XII d.C. no qual achado, é devido, antes de mais nada, ao estudo da cartografia local juntamente com a busca do arquivo. A cartografia antiga evidencia, nas proximidades da foz do canal de Lugugnana, um grupo de construções entre as quais destaca uma pequena igreja, agora chamada de “Santa Maria de Baseleghe” ou antes “Santa Maria della Lighignana”, aquilo que restava no século XVI, da primitiva alfândega veneziana, em plena atividade entre os séculos XIII e XIV.

Lugugnana

Em algumas prospecções subsequentes no local, as estruturas sobreviventes de duas construções, localizados na foz do Canal Lugugnana, foram encontradas, perturbadas pelo movimento das ondas, misturadas com centenas de fragmentos de cerâmica associados, em comparação, com a tipologia das cerâmicas envidraçadas venezianas, vidros, cerâmicas minerais, acromo, uma grande quantidade de pregos então totalmente corroídos e algumas moedas, ainda em fase de estudo; de grande interesse é um fragmento de chumbo de uma Bolla Ducale (atos públicos dos Doges de Venezia em forma de solene ofício redigido sobre um pergaminho como bola pendente de ouro, de prata ou de chumbo).

Como testemunha do transito de peregrinos vindos da terra santa a caminho de seus locais de origem, uma descoberta, quantitativamente pequena mas historicamente de grande interesse, de alguns fragmentos de cerâmica absolutamente fora de contexto, incluindo, muito raros, o fundo de uma tigela de majólica arcaica, produzida no século XIV na região de Taranto, que ainda hoje é o único espécime encontrado fora da lagoa de Venezia. Um atestado do tráfego comercial de Venezia (e, portanto, da área bizantina) para os territórios pertencentes ao Patriarcado de Aquileia é fornecido pelos materiais cerâmicos extremamente raros encontrados no local: Zeuxippus Ware (1 fragmento de uma placa, século XIII) Louça de Corinto (10 fragmentos de tigela) Majólica Arcaica (século XIII, 20 fragmentos) Islâmica (placa, 1 fragmento), bem como os já mencionados mais de 200 fragmentos de envidraçados do tipo "Campalto". O local nasceu em função do posto aduaneiro veneziano, equipado com uma guarnição regular (um capitão e alguns guardas); uma vez expirada esta função, foi provavelmente reduzida a uma simples vila de pescadores, até que, uma severa elevação do nível do mar, com ingresso de água marinha no terreno e nas casas, seria abandonada, deixando-se extraordinária (e muito evidente ) vestígios de sua presença.

San Michele como topônimo surge no século XIV: se trata de um contrato de compra e venda estipulado no ano de 1357. Aparece nos anais de Di Manzano onde, no caso, se atesta que “com instrumento do referente ano, Giovanni Susan de Peuscheldorf (Austria) transfere ao conde de Gorizia as vilas (mansões) de Latisana, San Mauro, Volta e San Michele…”. Durante os quase quatro séculos da dominação da Sereníssima (apelido de Venezia), de 1420 até 1797, San Michele fazia parte da “Terra da Tisana” e em consequência disso, como “Pátria do Friuli”, enquanto a curadoria dependia da vizinha antiga Pieve de San Giorgio, que também tinha jurisdição sobre algumas outras igrejas menores em locais vizinhos.

Neste período toda a “Terra da Tisana” se torna propriedade dos nobres venezianos e das suas famílias: Morosini, Mocenigo, Emo, Vendramin, Venier, Grimani, Minio, Loredan, Zovan, Molin, Bragadin entre outras. A família Zamarian, documentalmente, ao que tudo indica, ocupa o distrito de Malafesta a partir do ano 1600. Nas frações do território se elevaram as “comunas” (ou vilas) e cada uma era governada por uma autoridade dependente do capitão que residia em Latisana e que regia a comunidade em nome da jurisdição. Em todos os distritos ocorriam então as “vicinie” (vizinhas) ou “vicinanze” (vizinhanças), convocações de caráter popular e rural para tratar peculiares interesses da coletividade.

Podemos dizer assim que San Michele surge de uma riqueza cultural e natural de encher os olhos e para nossa satisfação seu surgimento ocorre quase que em comum cumplicidade com a origem Zamarian, talvez distante de pouco mais de um século uma da outra, mas com tempo suficiente para efetivamente ser muito especial para nós, pois desse solo, dessa história e do imponente Tagliamento que a permeia, é formado parte do nosso DNA.